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Artigo: uma recusa inesperada, uma traição generosa

Por Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza.

Talvez ninguém tenha expressado o dilema humano moderno com a mesma fidelidade obsessiva de Franz Kafka (1883-1924). Quando encontramos semelhanças em outros escritores, como Bruno Schulz (1892-1942) ou mesmo Samuel Beckett (1906-1989), é frequente designarmos suas obras com um adjetivo: “kafkianas”. Mas Kafka é mais comentado que lido. Em tempos recentes, veio às manchetes quando um Ministro da Educação confundiu seu nome com o de certa almôndega turca servida em espeto e por um movimento de “cancelamento” digital tão cego quanto a toupeira que ele descreve em “O mestre-escola da aldeia”.

Assim como poucos leitores do Dom Quixote se aventuraram para além do episódio dos moinhos de vento, raros são os que exploraram Kafka para além de “A metamorfose”. Em ambos os casos, corre-se o risco de uma interpretação equivocada dos autores. Por essa razão, talvez o texto introdutório mais apropriado fosse “Na colônia penal”, conto em que um aparelho de tortura tatua de forma dolorosa as sentenças sobre a pele dos condenados, levando-os à morte. Em um eco ampliado desse texto, o romance “O Processo” apresenta um homem comum julgado e condenado por um crime do qual nunca chega a ter conhecimento. Lidos em sequência, nos trazem a visão que Kafka tinha dos seres humanos: frágeis, perdidos, respondendo por pecados originais, remorsos familiares e culpas sociais tão obscuras quanto inescapáveis.

Consta que, quando lia trechos de “O Processo” a amigos, o autor ria bastante. Precisei assistir à versão filmada por Orson Welles (com Anthony Perkins, famoso ator de “Psicose”, fazendo o papel de Joseph K.) para entender o humor embutido numa história sombria. Por isso, creio que os romances “O Castelo” (em que outro K., um agrimensor, nunca consegue autorização para chegar ao local de trabalho) e “O desaparecido” devam ser lidos a seguir. Nestes, até o modo de caminhar dos personagens me lembra, inevitavelmente, os filmes mudos de Chaplin.

Jorge Luis Borges (1899-1986) dizia que o grande talento de Kafka era o de criar situações intoleráveis. De minha parte, creio que suas fábulas (“O covil”, “Josefina, a cantora”) e parábolas (“Um médico rural”, “Um artista da fome”) vão além disso. São muitas vezes ensaios de lógica envoltos em argumentos absurdos. Um exemplo é o texto curto denominado “O silêncio das sereias”. Nele, alterando radicalmente a conhecida passagem da “Odisseia”, Kafka apresenta um cenário em que Ulisses e as criaturas mitológicas enganam-se entre si a si próprios.

Kafka não é, portanto, o autor de uma história de terror em que um homem acorda transformado em uma barata. Quem conhece seus textos perceberá que mesmo “A metamorfose” descreve um ambiente familiar doentio ou – para usar um adjetivo da moda – disfuncional. De certo modo, esse texto faz eco a muito do que se lê nos extensos diários e cartas do autor, incluindo aquela endereçada ao seu pai. Mas o que de fato emerge de seus escritos íntimos é o artista completamente comprometido com sua criação. “Tudo o que não é literatura me aborrece”, escreveu.

É exatamente esse pensamento que torna assustador o pedido que Kafka, no leito de morte, fez ao amigo Max Brod: que ele destruísse toda a sua obra. Aquele que dedicara toda sua insônia à literatura – sendo, durante o dia, um discreto advogado em uma companhia de seguros – não via sentido em preservar seu legado após a morte. Mesmo para uma personalidade tão complexa como a de Kafka, a recusa à divulgação póstuma de seus livros causa espanto. Chama a atenção também a postura de Brod. Convencido da genialidade do amigo, este não só descumpre o último desejo, mas dedica sua vida à divulgação de textos muitas vezes inacabados. Como classificar essa traição?
Para compreendermos a circunstância, é importante acrescentar que Max Brod era um escritor bem mais conhecido naquela época que o amigo a cuja obra dedicou a vida. Em um livro recente, Karolina Watroba lembra que, a despeito de grande poder literário de Kafka, sua celebridade deve muito à preservação de seus escritos e ao encontro dos leitores certos no momento oportuno. É surpreendente que conheçamos tanto sobre ele, incluindo as cartas a suas noivas, os diários e as impressões registradas por aqueles que o conheceram. Mas é também relevante que o adjetivo “kafkiano” tenha ultrapassado o limite da literatura e hoje se aplique a qualquer contexto ao mesmo tempo incompreensível, burocrático e desconcertante.
“Alguns livros são como uma chave para salas desconhecidas em nosso próprio castelo”, escreveu Kafka aos vinte anos. Nenhum outro escritor, em uma vida tão curta, fabricou tantas chaves.

Sugestões de leitura:
Franz Kafka. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Antofágica, 2020.
Franz Kafka. O processo (edição especial). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2024.
Reiner Stach. Kafka – os anos decisivos. São Paulo: Todavia, 2022.
Karolina Wantroba. Metamorfoses – uma investigação sobre Franz Kafka. Lisboa: Crítica, 2024.

Artigo “UMA RECUSA INESPERADA, UMA TRAIÇÃO GENEROSA”, escrito pelo professor titular Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, diretor da FMB/UNESP e um dos organizadores da feira. 

Redacao 14 News

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