A pré-eclâmpsia, distúrbio complexo caracterizado pelo aumento da pressão arterial e possibilidade de comprometimento de diversos órgãos como rins, fígado e sistema nervoso, afeta aproximadamente 5% das mulheres grávidas em todo o mundo. Estima-se que, a cada ano, 8.5 milhões de gestantes sofram com a doença, uma das principais causas de morbidade e mortalidade materna e perinatal. As características patológicas da pré-eclâmpsia podem comprometer a mãe ou o feto, mas a prematuridade e a morte perinatal representam os resultados adversos mais importantes.
Embora o parto reduza os riscos para a mãe, o atendimento clínico deve sempre envolver um equilíbrio entre a saúde materna e o risco de prematuridade, pois as consequências do parto prematuro desnecessário podem ser substanciais para o bebê, com sequelas importantes a curto e longo prazo. Diante dessa realidade, desenvolver modelos de estratificação de risco para subsidiar decisões é um desafio na prática clínica.
No mundo estima-se que 15% dos partos prematuros sejam causados pela pré-eclâmpsia. No Brasil, a doença é responsável por cerca de 18% de todos os partos prematuros e quase metade dos partos prematuros iatrogênicos. Em países de alta renda, a prematuridade relacionada a pré-eclâmpsia representa cerca de 8% de todos os nascimentos prematuros.
Essa situação motivou um grupo de pesquisadores do Brasil e do exterior a desenvolver um estudo randomizado escalonado para avaliar se a estratificação de risco de pacientes com pré-eclâmpsia suspeita ou confirmada com base em critérios objetivos reduziria a proporção de partos prematuros por indicação médica. O trabalho utilizou-se de biomarcadores para rastreio do risco do desenvolvimento da pré-eclâmpsia.
Na prática, um biomarcador inclui ferramentas e tecnologias que auxiliam no entendimento da predição, causa, diagnóstico ou progressão para desfechos adversos de um tratamento ou uma doença. Clinicamente valioso no caso da pré-eclampsia, o teste avalia o desequilíbrio angiogênico característico da fisiopatologia da doença, com elevação de um fator antiangiogênico (sFlt-1) e redução de um fator angiogênico (PlGF). Ambos fatores são produzidos pela placenta.
De caráter multicêntrico, o estudo foi aplicado ao longo de 33 meses em sete centros terciários de assistência materna e perinatal espalhados pelo Brasil, entre eles o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), que também foi a unidade coordenadora dos trabalhos.
Participaram pesquisadores da Universidade de Pittsburg (EUA), da Universidade de Oxford (Inglaterra) e do King´s College de Londres (Inglaterra). Os representantes brasileiros foram o médico obstetra e ginecologista Leandro Gustavo de Oliveira, professor livre-docente do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/Unesp) e o pesquisador Marcos Augusto Bastos Dias, do Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz (RJ). O projeto foi financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério da Saúde.
Foram recrutadas pacientes com suspeita ou pré-eclâmpsia confirmada entre 20 e 36 semanas de gestação. Pacientes com comorbidades (por exemplo, hipertensão crônica, doença renal, diabetes) também foram incluídas. A suspeita de pré-eclâmpsia foi definida pelos médicos em consultas de rotina ou de emergência. Baseou-se principalmente na pressão arterial e/ou sintomas maternos relevantes como cefaleia, vômitos e dor epigástrica após 20 semanas de gestação.
“Quando se tem a pré-eclâmpsia existe uma forma de cuidado, que inclui algumas medicações, entre elas anti-hipertensivos, sulfato de magnésio, além de manter a paciente internada para monitorar as complicações. Mas o melhor para você reduzir os desfechos adversos é fazer o parto. Mas temos que dosar, não fazendo esse parto nem tão cedo nem tão tarde. Assim, o objetivo principal do estudo foi desenhar uma forma de estratificação de risco para identificar quais eram as mulheres que tinham menor risco de evoluir para formas graves de pré-eclâmpsia e, portanto, a prematuridade poderia ser evitada nesses casos”, explica o professor Leandro Oliveira.
Entre 25 de março de 2017 e 24 de dezembro de 2019 foram analisadas 586 pacientes no grupo intervenção e 563 pacientes no grupo de cuidados habituais. A taxa de eventos foi de 1,09% no grupo de intervenção e 1,37% no grupo de cuidados habituais. Após ajustes pré-especificados para variação entre e dentro dos grupos ao longo do tempo, a razão de risco foi de 1,45 (95% CI, 1,04-2,02; P=0,029), indicando maior risco de partos prematuros no grupo de intervenção, principalmente em um dos centros participantes.
Resultados
Os principais achados do estudo mostraram que a introdução de uma nova metodologia de avaliação de pacientes com pressão arterial elevada, caracterizada por teste de biomarcadores incorporando fatores angiogênicos e antiangiogênicos, não levou à redução de partos prematuros. Porém, a estratificação de risco contribuiu para que os profissionais identificassem de maneira mais precoce as mulheres com maior risco para desfechos adversos. “Dentro desse contexto, nós conseguimos reduzir um grave desfecho materno que é a ocorrência de eclâmpsia, as convulsões que acometem mulheres com pré-eclampsia”, ilustra o docente da FMB.
O estudo também mostrou que muitos profissionais ainda necessitam de treinamento para a utilização adequada dos biomarcadores. “Percebemos que alguns profissionais ao identificar as pacientes com maior risco baseado nesses biomarcadores ficavam mais tendenciosos a realizar o parto. Nossa pesquisa aponta para a necessidade do desenvolvimento de um programa contínuo de transferência de conhecimento para ajudar os prestadores de cuidados a ganhar confiança com novos testes. Se usados de maneira errônea podem induzir um tratamento ou procedimento que naquele momento era desnecessário”, adverte Oliveira.
Em grande parte dos casos notificados de pré-eclâmpsia, a paciente já chega aos centros terciários em uma situação de gravidade importante, reduzindo as chances de reversão do quadro. Essa constatação leva os pesquisadores a apontarem para a necessidade de utilização dos biomarcadores nas unidades primárias e/ou secundárias de atendimento, onde o pré-natal é realizado. “É bem provável que esse manejo oportuno nestes locais seja mais impactante para evitar que as pacientes cheguem num estágio muito grave no hospital”, afirma.
Outro ponto a ser destacado é que além da ação clínica, o estudo permitiu a criação de um biorrepositório composto por amostras biológicas de mais de 4 mil gestantes, que se encontram acondicionadas em freezers da UNIPEX – Unidade de Pesquisa Experimental da FMB. Esse material, que inclui soro, plasma, urina e células para extração de DNA, permitirá o desenvolvimento de pesquisas, colaborações internacionais e alavancar estudos das áreas de pós-graduação e iniciação científica da instituição.
A expectativa é de uma grande repercussão do estudo. A metodologia empregada e os resultados obtidos levaram a revista científica Hypertension, com grande fator de impacto e penetração altamente relevante, a aprovar sua publicação, que já foi feita em algumas de suas plataformas. “A gente precisava desse ponta pé inicial. Sem isso ficamos impossibilitados de utilizar as amostras que obtivemos para outros estudos. Até para análise de desfechos secundários isso não seria possível. Essa publicação é muito importante”, salienta Oliveira.
O docente da FMB ressalta ainda que o intercâmbio com pesquisadores internacionais para o desenvolvimento de projetos de caráter multicêntrico aumentam as chances de aprovação de novos estudos pelas instituições de fomento. “Já submetemos um projeto ao NIHR do Reino Unido. O trabalho pretende envolver Brasil, Índia e África para avaliar o potencial de biomarcadores em populações mais vulneráveis, identificando as pacientes com suspeita ou risco de pré-eclâmpsia já nas unidades primárias permitindo interceptar o problema antes que ele fique muito grave. O resultado do financiamento sairá em novembro e estamos apostando bastante por conta de ser um projeto multicêntrico que envolve vários países com populações vulneráveis. É um estudo bem robusto do ponto de vista de financiamento”, anuncia.
O artigo “PREPARE: a stepped-wedge cluster-randomised trial to evaluate whether risk stratification can reduce preterm deliveries among patients with suspected or confirmed preterm preeclampsia” pode ser lido em https://www.ahajournals.org/doi/abs/10.1161/HYPERTENSIONAHA.122.20361