Em 1849, arqueólogos britânicos escavaram uma área que hoje se situaria no norte do Iraque. A descoberta ali feita era por si só relevante. Dispostas de forma organizada, aproximadamente 30.000 tabuletas de barro cozido foram encontradas na biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria, que viveu no século VII antes de nossa era. Mas a grande surpresa veio depois.
Gravar caracteres em forma de cunha sobre tabuletas (e inglês se diria “tablets”) foi uma das primeiras e mais relevantes formas de escrita. Os documentos encontrados foram redigidos em várias línguas correntes na Mesopotâmia, com predomínio do Acadiano (uma espécie de “língua franca”, como é o inglês nos dias de hoje). Estava nessa língua a primeira versão encontrada da “Epopéia de Gilgamesh” – livro que narra a luta incansável e malsucedida de um rei para alcançar a imortalidade. Descobriu-se posteriormente que essa era a tradução de um texto babilônico cujas mais antigas versões datavam do século XVI antes de Cristo.
Um trecho chamou a atenção dos tradutores. Na tabuleta 11, Gilgamesh procura um homem a quem os deuses concederam a imortalidade: Utnapishtin. Sua história é a que se segue:
Cansados do barulho dos homens, os deuses resolvem enviar um dilúvio para matar a todos. Um deles, porém, alerta Utnapishtin: “derruba a casa, constrói um barco, conserva nele um casal de cada animal que vive sobre a terra.” E veio o dilúvio ao qual somente aqueles embarcados sobreviveram.
O espanto sobre essa história é que o texto antecede em muitos séculos a redação da bíblia. O tradutor – George Smith – ficou famoso após proferir uma palestra denominada “A Chaldean account of Genesis” (uma versão caldéia do gênesis). Houve mal-estar entre os religiosos.
Sabemos hoje que a Epopéia de Gilgamesh não traz a mais antiga descrição do dilúvio. Esta se encontra em poema babilônico do século XVI a.C., chamado “Atrahasis ou o super-sábio”. Esse texto narra a criação do mundo e o momento em que a humanidade é forjada a partir do barro. Refere o barulho humano que incomoda os deuses e a decisão de exterminar a população. Em determinado momento, as divindades lembram que alguém precisa sobreviver para continuar a adorá-los. Buscam então Atrahasis e ordenam a construção de uma arca. A história que se segue é a mesma narrada na Epopéia de Gilgamesh e no Gênesis.
Até o século XIX, acreditava-se que a bíblia era o livro mais antigo existente, e discutia-se a historicidade (a ocorrência real) dos fatos ali narrados. Desde então, achados arqueológicos tem demonstrado que as histórias constantes no pentateuco, tais como a da Torre de Babel ou da Arca de Noé, trazem ecos e influências do período em que parte dos hebreus viveram em exílio na Babilônia. Também revelaram um substrato cultural comum da região que os gregos chamavam de Mesopotâmia, localizada entre dois rios e onde as grandes enchentes pareciam dilúvios.
Como afirmamos acima, a escrita cuneiforme foi utilizada para textos em sumério, acadiano, hitita e persa antigo, entre vários outros idiomas do Oriente Médio e Ásia Central. A decifração dessas línguas trouxe à tona um mundo múltiplo com contínuas trocas comerciais e culturais, de povos guerreando e influenciando um ao outro. Os hebreus foram apenas um deles. Ǫue suas narrativas tenham sido melhor preservadas diz muito sobre a diáspora judaica e sobre o advento do cristianismo. Ainda assim, descobrir as raízes de cada narrativa, enxergar por trás de Noé as figuras de Utnapishtin e Atrahasis, enriquece nosso entendimento sobre a história dos seres humanos e suas grandes angústias, entre as quais a inevitabilidade da morte.
Desde cedo as pessoas letradas (escribas, sacerdotes, nobres) sentiram a necessidade de acumular documentos escritos em espaços de estudo e preservação da cultura. Essa é a pulsão fundadora das bibliotecas. Não podemos desejar senão que mais e mais sejam escavadas, nos apresentando novas histórias que nos desconcertam, mas também nos engrandecem.
Este artigo é o segundo de uma série de textos sobre livros escritos em homenagem aos 60 anos da biblioteca do Campus e como preparação para a FLIB (Feira Literária de Botucatu).